domingo, 22 de março de 2009

EDUCAÇÃO NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS

Autor: Flávio José dos Passos
O Brasil, após cinco séculos, inicia um verdadeiro processo de auto-reconhecimento num exercício de reconstrução democrática de suas relações étnico-raciais. E o presente momento sócio-político é marcado pelo reconhecimento por parte da sociedade brasileira da existência de milhares de comunidades e grupos étnicos que, durante séculos, foram violentados em sua dignidade e autonomia. O reconhecimento também diz respeito à dívida histórica para com essas populações.
Comunidades negras, indígenas e quilombolas são os grupos étnicos tradicionais que, somente a partir das últimas décadas, passaram a ser tratadas pelo Estado não como ameaça ou inimigos dentro do próprio território nacional, não mais numa perspectiva de isolamento e marginalização, mas como sujeitos de direitos constitucionais e como símbolos da resistência aos regimes escravocratas e racistas que prevaleceram por séculos.
A maioria absoluta dos quilombos vive em situações alarmantes e ao mesmo tempo conservadas nos rincões do Brasil, na maioria das vezes, sem condições de desenvolver uma agricultura de maior qualidade por falta mesmo de documentação que lhes outorgue o direito de contrair empréstimos, subsídios e financiamentos. Tais situações são atestadas e denunciadas por organismos internacionais, principalmente ligados à ONU, o que tem pressionado os últimos governos brasileiros a tomarem medidas mínimas de atenção política a estas comunidades.

MUDANÇA DE PARADIGMA – REVER O OLHAR

O primeiro passo significativo na mudança do paradigma da relação entre Estado e Comunidades Quilombolas deu-se quando, a partir da mobilização e organização de movimentos sociais e negros, a Constituinte de 1988 garantiu que a legalização fundiária fosse o primeiro passo, através do artigo 68 da Constituição Federal que diz:
“Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos” (art. 68 / ADCT / CF 1988)

No texto do artigo, apesar do conceito ambíguo de “remanescentes das comunidades de quilombos”, surge uma nova conceituação de Quilombo que põe por terra a visão já consagrada pela “história oficial” e arraigada no senso comum de serem quilombos comunidades formadas por escravos fugidos, logo, isolados e constituídos apenas por negros. Por isso o espanto quando se fala sobre comunidades quilombolas presentes e atuantes nos dias de hoje, no campo e na cidade, passados mais de cem anos do fim do sistema escravocrata.

Entretanto, a Constituição Federal reconhece que o termo Quilombo designa uma situação bem mais ampla e histórica dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos no Brasil, fazendo referência a terras que resultaram: a) da compra por negros libertos; b) da posse pacífica por ex-escravos de terras abandonadas pelos proprietários em épocas de crise econômica; c) da ocupação e administração das terras doadas aos santos padroeiros, ou, d) terras entregues ou adquiridas por antigos escravos organizados em quilombos. Assim, e) os quilombos foram apenas um dos eventos que contribuíram para a constituição das “terras de uso comum”, categoria mais ampla e sociologicamente mais relevante para descrever as comunidades que fazem uso do artigo constitucional.

Porém, desde 1988, nada havia saído do papel. O artigo era muito elástico em sua interpretação, ao mesmo tempo em que não apontava a partir de quais mecanismos e procedimentos o Estado deveria garantir a legalização fundiária dessas comunidades. Só a partir de novembro de 2003, foi assinado o decreto nº 4.887/2003,do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, concedendo a essas populações o direito à auto-atribuição como “único critério para identificação das comunidades quilombolas”, tendo como fundamentação a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê o direito de auto-determinação dos povos indígenas e tribais. Ainda de acordo o Decreto, que regulamenta o procedimento de regularização fundiária: “São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos asutilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.” De acordo com parecer do professor de Direito Constitucional e procurador da República Walter Claudius Rothemburg, tal construção é mais eficiente e compatível com a realidade das comunidades quilombolas do que a simples imposição de critérios temporais ou outros que remontem ao conceito colonial de quilombo.

Até o momento não há um consenso acerca do número preciso de comunidades quilombolas no país, mas segundo dados oficiais vindos da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), autarquia responsável pelo processo administrativo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão e titulação das terras ocupadas pelos Remanescentes de Comunidades dos Quilombos, 1.170 comunidades estão oficialmente certificadas e registradas pela Fundação Palmares, do Ministério da Cultura, e 252 processos de regularização fundiária em curso, envolvendo pelo menos 329 comunidades distribuídas em 21 estados brasileiros.

Segundo Maria Bernadete Lopes, diretora de Proteção do Patrimônio Afro-brasileiro, o apoio jurídico é a garantia de que o Estado se responsabiliza pela integridade da vida das comunidades quilombolas, já que os conflitos e ameaças contra elas passam a ser registradas com mais ênfase a partir da emissão do certificado às localidades.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estima que existam 2,5 mil comunidades quilombolas no Brasil. Associações e entidades tradicionais e o Movimento Quilombola contabilizam a existência de mais de 4 mil territórios.
No texto constitucional, utiliza-se o termo “remanescente de quilombo”, que remete à noção de resíduo, de algo que já se foi e do qual sobraram apenas algumas lembranças. Esse termo não corresponde à maneira que os próprios grupos utilizavam para se autodenominar nem tampouco ao conceito empregado pela antropologia e pela História. E “remanescentes” denota também o olhar do Estado como sendo aquele com a competência necessária para definir quem é ou não comunidade quilombola. Foi a crescente e árdua luta dos quilombolas e seus aliados que se opuseram a esta política e conquistaram o direito ao auto-reconhecimento, a partir de 1999 no Estado do Pará e, em 2003, na legislação federal.

Atualmente, o termo utilizado é “comunidade quilombola”, uma vez que elas resistem, praticamente, como desde a sua formação inicial e lutam para continuar existindo. E, sobretudo, por consistirem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar. Deste modo, comunidades remanescentes de quilombo são grupos sociais cuja identidade étnica os distingue do restante da sociedade. Identidade étnica, numa perspectiva de um processo de auto-identificação bastante dinâmico, resultado de uma confluência de fatores que variam desde uma ancestralidade comum, formas de organização política e social a elementos lingüísticos e religiosos. Elementos definidos pelos próprios quilombolas e não mais por um olhar externo.

Assim, o que caracterizava o quilombo, portanto, não é o isolamento, a homogeneidade étnica ou a fuga da escravidão, mas sim a resistência e a autonomia. Para sobreviver e resistir à dinâmica sócio-econômica do mundo que as circundava, os quilombos precisaram se expor, se impor e se auto-afirmarem enquanto comunidades autônomas. Neste processo, mesmo sendo ignoradas e perseguidas, as comunidades quilombolas construíram uma dinâmica riquíssima de diálogo cultural, de afirmação da identidade, de resistência étnica, de luta pela terra, de uso da terra, de relacionamento peculiar com a natureza que nos remete a compreensão de sua pertença a terra, de solidariedade interétnica, de sua ancestralidade, de todos os valores civilizatórios legados da África e preservados através de séculos de tradição, enfim, do aprendizado da língua e cultura da oficialidade branca, reinventando-a.

No Brasil, cerca de 2 milhões de pessoas moram em áreas quilombolas, num território equivalente ao Estado de São Paulo. Mais que uma extensão fiel da África, tal situação reflete a reinvenção da vida em solo brasileiro, desde a escravidão até o pós-abolição. Porém, o quilombola é uma presença tornada estranha e ameaçadora pelo olhar oficial e ideológico que inventa e faz desaperceber o Outro. O quilombola é uma presença marcante em nossa história, mas invisibilizada pelo medo de que essa sociedade não fosse a homogeneidade ocidentalizante sonhada desde o século XIX. Frutos dessa “negação do Brasil”, sem acesso à titulação das suas terras, ameaçadas e desrespeitadas em suas expressões culturais, estas comunidades foram isoladas à margem do processo de modernização durante mais de um século de República.

Em pleno século XXI, o Estado brasileiro detém uma parcela significativa da dívida para com as comunidades quilombolas. Estas são portadores de bens materiais e imateriais, referentes à identidade, à ação, à memória dos grupos afro-brasileiros, constituinte do patrimônio cultural brasileiro, sobre a proteção constitucional. Para a articuladora política da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Jô Brandão, é importante que, além da manutenção do Decreto 4.887, que o Estado “também considere e respeite a cultura quilombola como um patrimônio da União”.

Nas últimas décadas, o Brasil tem assumido sua dívida secular para com as tradicionais, localizadas, em sua maioria, na zona rural. A maioria absoluta destas comunidades ainda vive como que no século XIX, sem acesso aos bens mínimos da vida social como água potável, energia elétrica, moradias dignas, sistemas de educação e saúde de qualidade. Os passos são lentos por demais e, muitas das vezes, a legislação também não favorece. Hoje, os quilombolas são criminalizados por segmentos refratários de nossa sociedade e pela mídia que representa os interesses desses setores, como sendo a grande ameaça à democracia, à propriedade, à paz.

E os quilombolas hoje têm ainda de lutar contra a visão ocidental que homogeiniza as diferenças, que os quer atrás das “fronteiras bem estabelecidas que os separam do mundo exterior” (HALL, 2001, p. 65), de preferência, “reduzidos” em seus cada vez mais minúsculos territórios. Eis uma das faces do racismo brasileiro, o racismo ambiental, que caracteriza-se pela desestabilização social de comunidades tradicionais que mantêm uma relação de ancestralidade com a terra, e, ao mesmo tempo, possuem pouco poder político, econômico e judicial, tornando-se altamente vulneráveis.

A partir desse momento inicia-se um novo capítulo na história de nosso país: a recuperação do que é ser quilombola, de seus direitos e sua identidade. As próximas lutas serão: a efetivação de diversas Políticas de Ação Afirmativa e a Aprovação do Estatuto da Igualdade Racial – tramitando no Congresso Nacional há uma década.
Após séculos de opressão e resistência, as comunidades quilombolas saem da posição de silenciamento, da invisibilidade social e da grilagem de suas terras, para uma nova época de luta por dignidade, cidadania e paz.

Flávio José dos Passos
QUILOMBOLAS E A REFLEXÃO SOBRE
AÇÕES AFIRMATIVAS NA UESB

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